Antes de escrever este artigo, comecei a refletir sobre quem realmente tem interesse em nos monitorar atualmente — em pleno século XXI, na era da vigilância invisível. Percebi que ainda tendemos a manter uma visão bastante tradicional sobre o tema. Quando pensamos em segurança, vêm à mente câmeras nas ruas, policiais patrulhando ou seguranças em portas de lojas — todos símbolos visíveis de proteção. Mas será que essa concepção ainda faz sentido nos dias de hoje? Será que esse tipo de policiamento ostensivo — investido principalmente de forma punitiva — ainda é tão dominante quanto imaginamos?
O controle não é mais centralizado: está espalhado pela sociedade em forma de vigilância invisível
Vivemos na era da segurança invisível — um tempo em que somos protagonistas de um fenômeno curioso: mesmo sem saber (e, muitas vezes, sem querer saber) que estamos sendo vigiados, a vigilância está presente e se espalha silenciosamente por meio de tecnologias quase onipresentes. É uma sociedade quase utópica e quase saída de Admirável Mundo Novo — com um governo que opera como um grande Big Brother, pronto para surgir e te apontar um crime.
“Para funcionar, esse poder deve adquirir os instrumentos para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, enquanto permanece ela mesma invisível.”
— Michel Foucault, Vigiar e Punir
Houve uma inversão na lógica do controle. Hoje, existe uma disposição — e acredito que até mesmo uma necessidade — de nos tornarmos “visíveis”. Compartilhamos informações sobre nós mesmos quase o tempo todo: seja de forma sutil, ao preencher cadastros; seja de maneira escancarada, nas redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter e YouTube. Essa exposição parece estar enraizada em nosso DNA — e sentimos uma estranha necessidade de mantê-la.
O papel de “vigiar” foi descentralizado. A câmera, o policial, o segurança — o “dispositivo” que nos monitora — perdeu sua identidade formal. Aquilo que era função quase exclusiva do Estado no século XX, hoje está difuso pela sociedade e cresce em ritmo exponencial.
Somos perfeitos para o papel de vigilantes — percebe?
Será, então, que o verdadeiro triunfo da liberdade, atualmente, é o anonimato?

O fenômeno da autoexibição se uniu ao fenômeno da vontade insaciável por dar uma nota a tudo o que conhecemos. Estamos dedicados a passar dias “avaliando” tudo: curtindo fotos, escrevendo comentários, atualizando nossas informações pessoais, acessando sites que estão interessados em coletar leads (como e-commerces, bancos, vendedores etc.). Passamos o dia avaliando situações, pessoas e dando pistas sobre quem somos: perfeitamente invasivos.
A vigilância camuflada de Business Intelligence
Você faz meia dúzia de buscas no Google a respeito de um liquidificador de última geração que você quer comprar para fazer suas panquecas, vai dormir e, de repente, é despertado com explosões de anúncios de promoções de liquidificadores ao acessar novamente a internet. Bingo! Ao fazer algumas buscas no Google, você aciona uma cadeia de rastreamento: cookies, pixels de rastreamento e algoritmos de recomendação começam a trabalhar imediatamente. O que parece uma simples pesquisa por um liquidificador se transforma em um sinal comportamental. A partir disso, sistemas de vigilância digitais passam a acompanhar você de forma contínua, traçando um perfil de consumo, de interesses e até de rotina. Essa vigilância é sutil — não pede permissão explícita e muitas vezes passa despercebida. Mas é poderosa. Ela não apenas registra o que você faz, mas tenta antecipar seus desejos, moldar suas decisões e influenciar seu comportamento por meio da personalização extrema, principalmente em publicidade.
O que sobra disso tudo?
#1 A padronização social

Vigilância invisível.
Padronizações são assustadoras. A sociedade, à medida que se auto-regula, também se auto-limita. O que garante a efetividade completa é o fato de que nós viramos os policiais (porque vigiamos), os juízes (porque punimos), os detentos (porque nos imobilizamos) e os agentes penitenciários (porque garantimos a continuidade da prisão). Isso cria uma tendência: nossas opiniões e crenças tendem a permanecer iguais, uma vez que “discordar” é motivo para não sermos “aprovados”.
#2 A manipulação algorítmica

Vigilância invisível.
Um dos maiores perigos da vigilância moderna é a manipulação algorítmica. As plataformas digitais, munidas de nossos dados, não apenas observam nossos comportamentos, mas decidem o que veremos a seguir. Elas escolhem quais notícias chegam até nós, quais vídeos vão aparecer em nosso feed e até quais produtos irão despertar nosso desejo. O algoritmo, invisível e silencioso, molda opiniões, reforça crenças pré-existentes e cria bolhas digitais, onde só vemos o que confirma nossa visão de mundo. Isso não é apenas vigilância: é engenharia social disfarçada de conveniência.
#4 O racismo algorítmico
Uma continuação do item acima: a tecnologia de vigilância é vendida como neutra, mas não é. A partir do momento em que é construída socialmente, através de julgamentos diretos e pessoais, ela aprende com dados enviesados e reproduz desigualdades históricas. Pessoas negras e periféricas são mais vigiadas, mais suspeitas, mais criminalizadas — não por risco real, mas por preconceito codificado. Algoritmos erram mais com rostos negros, classificam comportamentos de forma tendenciosa e reforçam o controle sobre quem já vive sob vigilância constante. A promessa de segurança, nesse caso, tem cor e classe. E ela exclui.
#3 A sociedade do espetáculo

Vigilância invisível.
Histórias simples não geram estrelas, e isso não combina com nossa vaidade. E então, o que fazemos para saciar nossa fome não é nocivo, principalmente atrás de computadores e celulares. Hoje, há um repórter atrás de cada celular. E cada um reporta as informações de acordo com suas convicções, crenças, juízos, moral etc.